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     Parte-se do princípio de que a arte desponte do afastamento do indivíduo face à natureza, que advenha do território além fronteira do instinto, e que desse afastamento, brote uma necessidade de reencontro com o mundo natural, com a terra, uma necessidade de participar na totalidade orgânica que o engloba. Pressupõe-se que a sensibilidade para com a experiência de natureza acresça à medida que nela se reconheça um valor ameaçado.

     Re tornar terra versa sobre o tema da natureza, compreendida tanto como o mundo material, o universo físico e o conjunto das suas leis, como ainda o conjunto da totalidade orgânica. Compreende a realidade originária que, por definição, se opõe à indústria do homem, sendo que, aquilo que é dado pela natureza, o natural, é frequentemente colocado como oposto à produção da cultura. A presente exposição convida à interpelação das relações desenvolvidas com a ideia de mundo natural, sendo essas reais, que poderão ser entendidas como as estabelecidas com o meio envolvente, e fictícias que poderão ser entendidas como fundadas na morada imaginária de onde provêm as nossas imagens da natureza.

 

     Em Sal da Terra de Henrique Vieira Ribeiro ressalta o fascínio sobre a paisagem, sobre o entendimento clássico das imagens do mundo natural, onde cativo, o olhar do artista toma para si a transformação, a ondulação e a correlação dos elementos numa circunscrita percentagem de território. A enunciação de fenómenos naturais, como as reações químicas do sal contra os diferentes tipos de solo aparenta pronunciar, numa primeira instância, uma faceta documental que rapidamente se dissipa na perda de leitura como na noção de escala da realidade fotografada. Frente à obra exposta de Henrique Vieira Ribeiro, ressaltam dois momentos distintos de uma artificialização da natureza – o primeiro alimenta-se de um mundo que deriva de uma técnica e de uma cultura – a salicultura – para seguidamente, se definir uma nova artificialização do sal enquanto ente da terra, a exploração das reações químicas desse elemento natural sujeito aos processos e técnicas da fotografia analógica, resultando nas Provas de contacto – preciosas e exíguas paisagens portadoras de uma clara determinante estética.

 

     Natureza, no âmbito desta exposição, respeita ainda à natureza humana, ao natural do ser humano que corresponde simultaneamente ao que é próprio do seu instinto e à sua constituição cultural. A ideia de primitivismo e de um possível retorno a um estádio originário poderá neste sentido ser entendido como um equívoco. Parafraseando Jean-Jacques Rousseau: não é tarefa fácil discernir o que há de originário e de artificial na natureza atual do homem, tal como conhecer um estado que já não existe que provavelmente nunca existirá, e do qual é porém necessário ter noções exatas para poder julgar o nosso estado presente. Não obstante, a inquestionável natureza humana prender-se-á ainda à orgânica do corpo, da sua carne, de que nos fala Anabela Mota em Verticalmente Frágil. Por meio de uma afirmação direta, a artista reaviva a fragilidade da condição humana: tanto do ponto de vista anatómico, de um ser cuja construção física ereta culmina numa mente racional, sapiente e auto-consciente que, do seu topo, comanda e submete a natureza do corpo; como versa o questionamento sobre uma verticalidade assente na complexa estrutura social, resultante da expansão enquanto espécie, que domina e age sobre este planeta a que pertence e que partilha com um sem número de outras espécies. Num segundo momento, ao deparar com a interrupção oscilante dessa verticalidade sobre um eixo regular da peça, reconheçamos talvez uma demonstração de fé, uma subtil alusão à possibilidade de reaproximação e de retorno à essência, a uma reconexão da unidade física e mental com a nossa primordialidade.

 

     Seguidamente, O Caderno das paisagens de Daniel Moreira, remete-nos uma vez mais ao tema da paisagem traçada enquanto declarada alteração do paradigma do seu género: ela aqui já não é tomada como a totalidade perceptível de um território, para a sua desconstrução por meio da selecção e da evocação de determinados aspectos naturais. Viagem, registos de percursos sobre um ou mais territórios, recolha de fragmentos... A paisagem é ainda pensada como um sistema complexo culturalmente construído ao qual se associa a subjetividade e relação com o observador. Tomando a forma de instalação ela é transplantada para o espaço expositivo produzindo aqui uma nova paisagem, para qual Daniel Moreia evoca a memória da experiência de natureza namorando a ilustração, a fragilidade dos suportes e dos múltiplos elementos, mais que a realidade natural que lhe deu origem.

 

     Um arquipélago semelhante tece-se na obra colaborativa entre Daniel Moreira e Rita Castro Neves Estudo de paisagem. Provindo da combinação de vários momentos e recorrendo uma vez mais ao imperfeito ato de relembrar. As memórias e objectos pessoais são mesclados com as histórias e os artefactos do mundo natural: o desenho surge ora sobre um tecido grosso enrodilhado ora sobre um bastidor, o próprio cabelo é usado para bordar e inscrever um outro corpo num guardanapo estampado a ponto de cruz, barcos estampados navegam num tecido antigo, agulhas de um pinheiro desenham uma paisagem sobre uma colcha portuguesa... Estamos perante a conversão do processo melancólico da evocação de memórias num protocolo irónico a que não falta encanto estético, e à qual se associa o carácter moroso e delicado, a virtuosidade da própria manufatura.

 

     Rita Castro Neves em Soundcrafts #1: pulse, parece ainda apontar para a diluição de fronteiras entre natural e humano, através da apropriação de uma pinha que aperta e segura na sua mão. Perante o gravador que regista o som da ação, presenciamos a fusão dos dois primeiros elementos numa só natureza. Para além da narrativa associada, a obra convida à absorção e à contemplação da organicidade dos nossos corpos, à experiência dos nossos sentidos para lá do ato de revivescer.

 

      Sobre a organicidade e entendimento da natureza enquanto força vital, falam-nos as sobreimpressões de Catarina Domingues. Em cada uma delas estamos perante a intersecção de dois momentos formulados por tempos e espaços distintos, que encontram como denominador comum a paisagem, a linha orgânica e o feminino – não enquanto género mas enquanto lugar do materno.

     Nas suas delicadas sobreposições de desenho e paisagem evidenciam-se as referências ao materno pela representação de claros símbolos de fecundidade, como a fenda e o buraco, que nos abrem caminho para a significação da natureza como Tellus Mater (Mãe Terra), como aquela que dá, sustenta e tira a vida, como potência passiva de reconexão e regeneração. Potência que a artista parece buscar em obras como Terra e Suspensão, ao entregar-se ao calor e brandura dos solos, ao fazer seus os veios de uma planta, ao diluir-se nas rochas e na escuridão de uma gruta... ressalta ainda uma marcada atitude performativa da artista, à qual se associa a sua convicção de toda a vida ser indiferenciadamente natureza, celebrando “o espanto e o assustador do que nos envolve e, mais ainda, que nos constitui biologicamente”.

 

Por último, Bárbara Bulhão coloca-nos um desafio, onde é novamente proposta a reflexão sobre o nosso entendimento entre os limites da natureza e da cultura, que remonta a uma das primordiais relações entre homem e o meio envolvente, concernindo o abrigo, a segurança, a residência na terra. São-nos apresentadas duas esculturas, dois módulos sob a forma do tijolo de Grupo 3 de uso não estrutural, (destinados ao preenchimento de reentrâncias), que resultam, no seu processo de produção, de uma recuada prática da construção na qual se recorre à adição de sal ou açúcar ao cimento visando a alteração do tempo de secagem do mesmo. Ao adotar esta prática e ao apresentar estes dois elementos conjuntamente, como um só, Bárbara Bulhão alcança a conjugação e intersecção de duas temporalidades para formação uma única, consubstanciando o tijolo de utilização convencional de uso estrutural, para a edificação da casa, do espaço destinado à esfera do privado e das relações familiares em que, citando Peter Sloterdijk “não é o espaço que é condição de possibilidade de um estar juntos, mas é o estar juntos que possibilita o espaço”.

 

Em re tornar terra revelam-se seis modelos de inteligibilidade diferentes sobre a natureza, que, mediados por desenho, instalação, escultura, fotografia e vídeo, manifestam versões paralelas da relação e significação da natureza, remontando para os processos de metamorfose cultural que sofrem as imagens do mundo natural.

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